quarta-feira, 18 de março de 2009

Quebrando as regras


Uma das grandes conquistas da modernidade nas artes cênicas é a possibilidade de romper com as regras estabelecidas previamente pelo que podemos designar de cerimonial teatral, onde cada um sabe claramente qual é o seu lugar no espaço dedicado ao jogo: público na platéia, ator no palco, e assim por diante. Claro que essa possibilidade acabou por abrir uma espécie de caixa de Pandora aos fazedores teatrais já que, a partir do momento em que se estabeleceu a possibilidade de se quebrar certas regras, o caótico se passou a justificar a si próprio, sem que ao artista lhe tivesse sido dada a responsabilidade de saber que, mesmo para se quebrar uma regra secular, o método e a disciplina são fundamentais. Se assim não fosse entraríamos num universo em que nada significa nada (ou o tudo significa nada e vice-versa) e ao artista lhe seria colocada na testa uma etiqueta de contemporâneo sem que este tenha feito muito que merecesse tal epíteto.

Ora, a peça “Ele precisa começar”, escrita e interpretada por Felipe Rocha, vive e respira da quebra de certas regras do jogo teatral clássico, de uma forma assumida, perspicaz, interativa e por vezes até surpreendente, porque coloca sempre o espectador na dúvida sobre o que poderá acontecer no momento seguinte. Esse é o segredo, afinal, de uma arte que não tem segredos: a capacidade de manter a atenção de quem vê, a cada instante, para um combate sem tréguas ao que Peter Brook designou de forma brilhante por “as artimanhas do tédio”. Assim, quando o público entra na sala, já o ator se encontra deambulando pelo espaço cênico, cenografado de forma muito simples (uma escrivaninha com um laptop e um abajur, duas cadeiras e pouco mais), sendo que no início estava perfeitamente claro onde era o lugar de quem vê e onde era o local de quem faz, ainda que ao público lhe tivesse sido dada possibilidade de tomar um café, colocado ali mesmo numa pequena mesa da sala de apresentação para quem se quisesse servir.

Esta divisão será posteriormente quebrada várias vezes com a intervenção do protagonista na sua relação com algum espectador particular e pelo próprio trabalho de iluminação, que geralmente é determinante na clarificação entre o que é cena e o que não é cena (o que é, está iluminado; o que não é está “escondido” pela escuridão). Na peça, e por diversas vezes, o público é “colocado” dentro da luz, ou seja, é incluído no jogo cênico definido pela luminosidade. E o que à partida é um monólogo se transforma num interessante diálogo direto com o público e esta interação tem o seu ponto-chave quando, logo no início, o ator desafia alguém da platéia para interpretar o papel da co-protagonista, uma mulher chamada Fátima, sem a qual a trama não se poderia desenrolar. Importante referenciar que a atriz acidental não é forçada nem escolhida, mas sim se oferece a partir de um processo de sedução em que o ator (ou o protagonista, já que tudo se confunde) convence alguém a entrar em cena. A sua presença – a do personagem feminino – é tão importante que é ela quem define o final do espetáculo, um remate de uma beleza poética inquestionável porque é a uma pessoa que inicialmente estava na platéia que lhe é dada a possibilidade de fechar a luz da cena e sair pela porta da rua, com o protagonista, de novo envolto no manto ambíguo da solidão, se questionando afinal “o que é que está do outro lado?”.

O enredo nos mostra um dramaturgo que tem que escrever uma história. Que inventa e se deixa entusiasmar pelas suas idéias mirabolantes. Que se deixa invadir por seus sonhos, paranóias, medos, sejam eles o medo de se afogar por um dilúvio ou de ser perseguido por um conjunto ensandecido de mafiosos romenos. Aqui, na verdade, o texto é quase só pretexto, mas o que poderia ser um momento de puro narcisismo ou exibição pessoal, como acontece em tantos monólogos, acaba por resultar num espetáculo sólido, bem interpretado, divertido e que nos faz refletir sobre o lugar da dramaturgia (e do próprio público) no teatro que se faz hoje. Tal como o protagonista no final, também nós somos perseguidos por sonhos ruins, mas felizmente levamos conosco o sábio conselho que esta peça nos oferta: que quando somos perseguidos pelo medo de alguma coisa, o melhor mesmo é parar de fugir e caminhar na direção dessa coisa. Se levarmos essa idéia do teatro certamente já sairemos ganhando com a experiência. E aí, o teatro terá cumprido sua missão.

por João Branco - diretor artístico do festival Mindelact, Cabo Verde
Integrante da Oficina Teatro por Escrito, ministrada por Fátima Saadi.
Publicado no jornal da Mostra SESC Cariri de Cultura

Um comentário:

Thiago Spektror disse...

Vai deixar saudades.Assisti duas vezes: a penúltima e logo senti uma sede de voltar e conferir outra,a última.Já me sinto órfão.Amei extremamente este texto e atuação de Felipe Rocha o qual jamais tinha conferido no teatro e apenas conhecia pouco de seu trabalho e já curtia pacas a Brasov a um tempinho.Fiquei fascinado com a ousadia,o experimento,não sei se inovação,mais pra mim sim,por eu assistir vários espetáculos quadradinhos e nunca nesta linha.E eu gosto disso de um teatro visceral que eu capto o sentimento e identidade que esse trampo tem e mexe com o público de alguma maneira.É gostoso ver a inquietação das pessoas ou porque estão amando,ou porque estam desconfortáveis ou até mesmo odiando.É delicioso saber disso,ouvir sensações,impressões que os amigos tem sobre um trabalho o qual me identifiquei plenamente.É por isso que amo teatro,é por isso que vivo.Digo que jamais vou esquecer de Fátima,das Fátimas que vi e desse belo espetáculo.O quanto antes espero que retorne aos palcos daqui de Sampa com certeza estarei lá!Vida longa a esse trabalho e muito sucesso.Eu quero que muitas pessoas o assistam ainda.Bj e forte abração à você Felipe,Alex.TS